
– Tira o pé daí. Vai mais pra lá. Então, eu estava refletindo sobre essas coisas, enquanto tua cabeça guardava vento.– No meu pé? Ai, que delícia. Adoro quando tu pensas em mim. Seja qual for a parte do corpo em meditação. Mas, olha, teu interesse pelo meu pé me surpreendeu, viu? Tu tens um pezinho de anjo, tão pequenino... Põe aqui pertinho do meu, põe...– Palhaço sem rouge. Eu não estava pensando no teu pé coisa alguma. Só disse pra tirar ele daí. Tu és função sem noção da finalidade... Tu não sabes se comportar, não? Aliás, por falar no teu pé, tu continuas odiando meias, né?– Ué?! Tinha graça eu começar a gostar de meia depois de morto? Sempre detestei... Só serve pra tomar o tempo de um homem. De homem macho, lógico. Mas tem uns por aí que gostam dessa coisa de meia escorregando pelas canelas, de curtir um lisinho mais macio dentro do sapato, do tênis... Eu tô fora dessa. Pra falar a verdade, do lado de cá não se tem tantas opções assim na hora de ganhar o passe pra bater perna por aqui não... não, senhora. Deixa eu ver teus dedinhos?– Sai pra lá, chulé. Não era nesse tipo de fusão que eu estava me concentrando...– Não era, não era, não era... Nunca era. Já reparou que tu nunca empatas com meus pensamentos? Que desperdício de tempo! Se tu queres esquentar a cabeça à toa, por que não aproveitamos para fundir ideias mais gostosinhas... de verão... de inverno... de chuva lá fora, pra se escutar debaixo de um cobertor... Mas tem de ser daqueles cobertores que não valem nada. Bem porcaria mesmo, bem velhinho, usadinho, com cheiro de amor e, apesar de maltrapilho, ele tem de ser macio...– Descontinuidade cerebral, trava essa ala da tua imaginação e retorna aqui comigo pra realidade, se é que isso ainda é possível na tua dimention, copiou?– Copiei que tu perdestes as reflexões num passado sem volta, mulher! Pra começar, não dá pra trocar uma ideia coerente com quem ainda fala rouge nos tempos do blush.– Nossa, que ousadia! Uma correção factual. Agora ressurgiram minhas esperanças! Talvez parte do teu cérebro ainda esteja mesmo funcionando como o de qualquer ser humano. Podemos tentar, então, subir um pouquinho o nível, só pra variar, palhaço sem blush?– Claro, minha linda. Podemos subir quanto quiseres para fundir melhor nossas ideias. Quer ir comigo hoje até aquela estrela que está piscando pra nós dois desde a hora que tu me vistes?– E se eu respondesse sim? O que tu farias? Aquela estrela tem a morada dela milhões de anos-luz do teu sorriso desarmado. Não a alcançarias nem mesmo com a ponta tão cumprida do teu nariz, que cresceu assim de tanto tu mentires pra mim.– Queres que eu te conte uma verdade, agora, ou preferes ir comigo descobrir se há nuvens no céu daquela estrela?(...)– Responde, meu amor. Ficamos na tua verdade, enclausurados nestas paredes da realidade que tu não suportas mais, onde te falta o mel do sonho arquitetado, doce olimpo das fantasias que sopram ondas num mar que não requer autorização oficial para te banhar, para banhar a areia que tocam teus pés de anjo, ou vamos, agora, praquela pequenina estrela, decorada com gotinhas tiradas das uvas lilás, docinhas como tu quando ficas ao abandono, e perfumada com o aroma das mais vermelhas rosas recém-desabrochadas que tu comigo poderás avistar do nosso cobertor mágico a flutuar?– Infelizmente, não poderei aceitar convite tão tentador.– Por que, minha flor?– Porque, como sabes, ainda estou de plena posse da minha consciência, apesar das ondas de frequência oscilantes.– Ah! Isso é verdade. Eu estava mesmo pensando em te dizer isso. Tu andas oscilando demais, mulher! Qualquer vacilada minha e, quando vejo, tu estás oscilando outra vez...– Mané, por acaso tu tens medidor de oscilação das minhas frequências mentais no bolso? Impossível, pois se tu nem calças tens...– Hahahahahahaha... Nem calças, nem meias, nem cuecas... Mas tenho umas vantagens que qualquer homem vivo, se as conhecesse, invejaria. Aliás, até morto-vivo tem inveja das minhas vantagens, sabia?– Não sabia, não, nem estava querendo saber. Panca, eu não disse que minha consciência tem ondas de frequência oscilante. Eu quis dizer que em volta dela, aí sim, muita coisa anda oscilando. Entendeu agora?– Ah! bom. Agora entendi. Acho. Tcheu ver: tua consciência, limpinha, absolutamente limpinha, da qual tu tens plena posse, está paradinha, sem se mexer, sem fazer nada, quietinha, ora pensando na estrela própria que eu descolei pra morarmos na nossa eternidade, ora pensando nas fusões das redes varejistas brasileiras que sonham em ganhar o mundo navegando pela Bahia, ora tropeçando no sono da noite que foi embora e ganhou teu dia, ora se preocupando com o rouge, o blush, o palhaço, o salto alto, a calcinha, a barriguinha, ora cor de rosa-choque-não-me-provoque, ora, ora tentando lembrar se o farol estava vermelho, amarelo ou verde pra quem dirigia do teu lado, enquanto tu seguias em frente sem abrir os olhos... enfim, tua consciência sempre tão harmonizada, segura de si mesma e sincopada está tranquila, enquanto ao redor dela o frenesi se instaura em ondas incomensuráveis... Seria isso?– Nem tanto.– Nem tanto pra que lado?– Pra nenhum deles.– Nem pra cá, nem pra lá?– É. Nem lá, nem cá, nem ali...– Perfeito, ou seja, meus pés estão ou não no lugar certo, independentemente do lado soprado pelo vento?– Ok, não se fala, nem se pensa mais em fusão por aqui. Pronto.– Um pulinho na nossa estrela, agora?– Vai dar não. Uma frequência acaba de bater por aqui e já contou pra minha consciência que teu cafofo estelar próprio fica pra lá de onde o Judas perdeu as botas.– Judas? Quem é esse cara? Ele ficou só sem as botas ou as meias se foram junto com elas?– E eu lá sei se Judas usava ou não meias, Defu? Dá um tempo.– Ai, ai... Tem alguma coisa que tu me pedes que, por acaso, eu não te dê? O tempo e eu somos todinhos teus. Mas tu não achas que pés tão valentes como os meus, sem meias, do jeito que tu gostas, são dignos de um cantinho do teu cobertor?
P/Gisele Centenaro
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